Uma pessoa morreu e outra foi contaminada – ambas por bactérias – após receberem transfusão de sangue. Os dois pacientes foram atendidos no Hospital das Clínicas (Hucam) e o sangue por eles utilizado era do Hemocentro do Espírito Santo (Hemoes). Os casos foram notificados para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e as causas da contaminação estão sendo investigadas.
Havia a suspeição de que teria ocorrido uma terceira contaminação, de uma criança internada no Hospital Infantil, o que não foi confirmado.
A situação é considerada grave pelo superintendente substituto do Hucam, Márcio Martins. “E está sendo investigada para que não ocorra novamente”, destacou. Para o diretor geral do Hemoes, Clio Ventorim, foram casos pontuais, mas que merecem atenção. “Foram contaminações por bactérias diferentes. Mas nos preocupa porque a qualidade deste serviço é fundamental para salvar vidas”.
Reações
A primeira paciente a apresentar problemas foi uma senhora de 54 anos que fazia transfusões regulares no Hemoes e morreu no dia seguinte ao procedimento. Ela era portadora de anemia falciforme - doença que afeta os glóbulos vermelhos - e cardiopata.
No último dia 10 de maio, quando a transfusão era realizada, ela apresentou reações, que variaram de tremores e calafrios a febre e coceira. “Foi avaliada na hora por um hematologista e foi feito um hemograma, que não indicou contaminação. Após três horas de observação, ela foi liberada”, explicou Ventorim.
Posteriormente, a família informou ao Hemoes que na noite daquele mesmo dia ela voltou a sentir os mesmos sintomas e foi levada a uma unidade de saúde, de onde também foi liberada e retornou para casa.
De acordo com Ventorim, logo que após o problema, o hemocentro iniciou os procedimentos para averiguar o que tinha ocorrido: “É praxe nos casos em que um paciente apresenta reação à transfusão”. A bolsa utilizada foi levada para exames e, na manhã seguinte já se tinha a confirmação de que o sangue estava contaminado pela bactéria Serratia marcescens.
A paciente foi chamada novamente ao Hemoes, onde foi informada sobre a situação. De lá foi levada para o Hucam, utilizando os serviços de urgência do Samu. “Ela chegou ao hospital em estado grave, que piorou ao longo do dia e faleceu durante a madrugada”, explicou Márcio Martins.
Um mês depois, já em junho, ocorreu outro caso, desta vez com um paciente do Hucam. Um senhor com mais de 70 anos, que apresenta uma doença hematológica grave e que precisou de uma transfusão de hemácias - um dos componentes do sangue.
Assim como a mulher, ele apresentou reação, com tremores e calafrios. “A transfusão foi interrompida logo no início, o paciente foi tratado e já recebeu alta hospitalar”, explicou Martins.
A contaminação, neste caso, ocorreu por uma bactéria de nome Bacilus sp. “Uma nova cultura foi feita para saber a categoria da bactéria”, relatou o superintendente. Ele avalia que a virulência dela é menor, já que o quadro do paciente evoluiu bem.
Durante a apuração do caso, o Hemoes descobriu que um terceiro paciente poderia ter sido contaminado. Uma criança internada no Hospital Infantil de Vitória e que recebeu uma transfusão de plaquetas. Um componente do mesmo sangue recebido pelo senhor de 70 anos. “Ela não apresentou reações. Na prática foram confirmados dois casos”, explicou Ventorim.
Contaminação pode causar infecção generalizada no paciente
A contaminação contraída em transfusão é grave, pois provoca uma infecção generalizada no paciente, como explica o médico hematologista Aminadab Francisco de Sousa. “Você está injetando bactéria no sangue do indivíduo. Se o paciente já está muito debilitado, isso pode agravar muito o quadro clínico”.
Segundo estudo publicado no Transfusion Medicine Journal (2007), estima-se que pacientes que recebem hemácias, o componente do sangue mais comumente transfundido, têm uma chance em 38.500 de se contaminar com bactéria. Já quem recebe plaquetas, tem uma chance em cinco mil.
A transfusão de sangue é um terapia utilizada por muitos pacientes, principalmente aqueles que sofrem de problemas genéticos, como anemia falciforme, anemia aplástica ou talassemia. Esses pacientes chegam a fazer uma transfusão a cada 21 dias, o que aumenta o risco de infecção pelo sangue transplantado. “A transfusão é segura, mas não isenta de riscos”, explica Sousa.
Segundo ele, é necessário que os pacientes recebam orientação sobre esses riscos antes de começar o tratamento. “Em vários serviços, é preciso que o paciente assine um termo de consentimento”, diz.
Além das pessoas que utilizam a transfusão para tratar de doenças hematológicas, a transfusão também é utilizada em casos de grandes cirurgias ou em pacientes em tratamento de cânceres, como a leucemia.
Etapas da transfusão estão sob investigação
As suspeitas iniciais sobre a contaminação do sangue usado na transfusão feita em dois pacientes e que matou um deles, recaem sobre a bolsa que foi utilizada para armazenar o sangue e até sobre a possibilidade de bactéria no sangue do doador, sem que ele apresentasse sintomas (bacteremia assintomática). “Todas as etapas estão sendo avaliadas”, explicou Clio Ventorim, diretor do hemocentro.
Os exames iniciais mostraram que as bolsas estavam contaminadas, mas ainda não se chegou a conclusão de como isso ocorreu. Segundo Ventorim, a empresa que fornece o material já confirmou que todo o lote usado tinha sido esterelizado. “Mas ainda estamos checando as demais etapas até elas serem entregues no Hemoes, como é o caso do transporte”, explicou Ventorim.
Querem ainda obter uma amostra da bolsa, do mesmo lote, para fazer o teste de contaminação. Nos próximos dias uma equipe da empresa, uma multinacional, vem ao Estado ajudar nas investigações.
Revisão
No caso da paciente que morreu, há suspeita de que o doador estaria com uma bacteremia assintomática, já que na entrevista ele garantiu não apresentar nenhum sintoma ou reação. “É uma possibilidade rara, mas acontece”, diz o diretor, explicando ainda que após a doação são feitos diversos exames no sangue para identificar doenças.
Já os testes do paciente do Hucam foram realizados no hospital. O sangue da bolsa estava contaminado, mas o sangue que permaneceu no Hemoes (em uma parte da bolsa conhecida como rabicho) e que serve como contraprova, não apresentou contaminação.
Também não apresentava o problema a parte do mesmo sangue que foi usada em uma transfusão em uma criança, no Hospital Infantil. “Para este caso estamos buscando mais informações”, acrescentou Ventorim. Ele disse ainda que o assunto também será discutido no Comitê Transfusional, do qual participam o Hemoes, outros bancos de sangue, assim como hematologistas. “Nós ficamos transtornados e queremos rever todo o processo transfusional para entender e explicar o que aconteceu”, diz Ventorim.
Ele adianta que até os doadores foram convocados para uma nova entrevista. E mais, que os procedimentos adotados no Hemoes, desde a doação, até o processamento e envio do material para os hospitais, já foram avaliados. “Não encontramos nenhum problema”, relatou.
Além de notificar a Anvisa, o Hucam também revisou os procedimentos da transfusão do paciente que foi contaminado no hospital. “A vigilância sanitária estadual já nos visitou. Não há problemas, mas estamos revendo os processos e fazendo a prevenção”, disse Márcio Martins, superintendente substituto do hospital.
Hemoes vai passar a analisar todo o sangue
Todo o sangue utilizado em transfusões realizadas no próprio Hemoes passará a ser analisado. Antes elas eram feitas por amostragem. A decisão foi tomada após contaminação por bactéria ocorrida em um procedimento realizado no próprio hemocentro, em maio deste ano.
Tratam-se de procedimentos agendados - que não são de urgência -, destinados a pacientes com graves doenças no sangue, como os portadores de anemia falciforme.
A preocupação decorre do fato de que, em casos mais graves, o Hemoes não teria equipamentos para garantir a sobrevivência do paciente. “Não somos um hospital, por isso vamos checar todas as bolsas transfundidas”, relatou o diretor do Hemoes, Clio Ventorim.
Outra medida é de que agora, 25% de toda a produção de sangue será testada. A legislação da Anvisa exige que apenas 1% seja avaliado para evitar contaminação. “Já testávamos cerca de 15%, mas vamos ampliar a verificação diante do que aconteceu”, explicou o diretor.
O Hemoes fornece sangue para todos os hospitais públicos do Estado. Por ano são mais de 60 mil transfusões. “E tivemos apenas dois casos de contaminação, um dos menores índices de contaminação do país, 0.003%”, pondera Ventorim.
“Não há risco de contaminação para doadores”
“Não há nenhum risco para os doadores”, garante o superintendente substituto do Hospital das Clínicas (Hucam), Márcio Martins. Ainda não se sabe como ocorreu a contaminação que atingiu dois pacientes transfundidos, mas o diretor do Hemoes Clio Ventorim afirma que não representa perigo para quem doa. “O procedimento é seguro e tem salvado a vida de muitas pessoas”, assinala.
A preocupação é com uma possível redução de doações de sangue que já não são suficientes para atender as demandas dos grandes hospitais. “Por diversas vezes temos que suspender cirurgias por falta de sangue. Pacientes precisam aguardam até mais de uma semana para se obter sangue”, assinala Martins.
No ano passado o Hucam realizou um total de 5.464 transfusões. Só este ano já foram 2.727. “E estes os únicos casos de contaminação registrados nos dois últimos anos. É um pequeno percentual diante do volume de transfusões realizadas”, destacou Martins.
O superintendente explica ainda que em casos de transfusão há o risco de que ocorram contaminações. “Elas acontecem uma vez a cada 25 mil casos. Podem não ser frequentes, mas ocorrem”.
Tanto o Hemoes quanto o Hucam ainda aguardam um retorno da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre os procedimentos adotados nas duas unidades. “Estão avaliando. Podem decidir até fazer uma fiscalização, mas não tivemos nenhuma resposta ainda”, explicou Ventorim.