Dois anos, oito meses e uma centena de condenações depois, a Operação Lava Jato avança com todas as credenciais para ter nobre espaço na história, na condição de maior esforço de combate à corrupção no país. Por ter alcançado parte da cúpula política e empresarial, que nunca antes se sentira na berlinda, e pela apreensão generalizada ter inaugurado mudanças importantes na relação entre o público e o privado, entusiastas veem na operação um novo marco na República brasileira.
Até o último dia 31, eram 118 condenações na primeira instância. Se somados todos os prazos, são 1.256 anos em penas. “Está se fazendo uma nova República no século XXI”, crava o juiz federal Américo Bedê Freire Júnior.
“Certamente provocará inúmeros impactos positivos como, por exemplo, a punição dos envolvidos, independentemente do cargo e situação financeira, o que demonstra o enfraquecimento da sensação de impunidade”, frisa Jorge Abikair, professor de Direito da FDV.
Mas, à medida que chegava aos calcanhares de políticos influentes, estabeleceu-se uma relação de amor e ódio com a operação, pessoalizada na figura do juiz federal Sérgio Moro.
Apreciador dos resultados da operação, o secretário-geral da Associação Contas Abertas, Gil Castello Branco, observa que os incomodados pela Lava Jato se uniram para deslegitimá-la e para contê-la. É o caso, por exemplo, do projeto que anistia o caixa dois, em tramitação no Congresso.
“Essa operação já entrou para a história, definitivamente. O filme está acontecendo. O que ainda não sabemos é o final. Se terá final feliz para a sociedade ou se sairemos frustrados”, comentou.
As críticas a Moro não ficam no meio termo, embora suas decisões tenham sido mantidas nos tribunais. Alguns juristas, por exemplo, apontam o “excesso de prisões temporárias”, a interceptação telefônica da presidente e o apelo do juiz por respaldo popular às decisões.
O presidente da OAB-ES, Homero Mafra, avalia que o grande mérito da operação é desvendar a relação perversa entre classe política e grandes empresas, mas isso não pode justificar excessos.
“Tivemos decisão do TRF numa sentença do Sérgio Moro dizendo que, para tempos excepcionais, medidas excepcionais. Nenhum tempo pode quebrar o Estado de Direito. Nenhuma ação, por mais bem-intencionada, pode justificar o excesso”, defende Homero.
“Não podemos criar superjuízes. É perigoso. Ele passa a não prestar obediência a não ser à própria consciência”, alerta o advogado.
Juiz capixaba adverte: não há ponto fora da curva
Juiz federal no Espírito Santo e professor de Direito da FDV, Américo Bedê Freire Júnior compartilha o apoio dedicado pela magistratura federal ao trabalho do colega Sérgio Moro, no Paraná, mas chama a atenção para um foco equivocado do apelo popular.
“A sociedade precisa de instituições fortes, não de ídolos”, declarou.
Freire Júnior também destaca a gama de qualidades de Moro, mas salienta que outros magistrados teriam condições de desempenhar o mesmo papel. O que o diferenciou foi a estrutura que teve para agir, no comando de uma força-tarefa específica. Moro é dedicado exclusivamente à Lava Jato.
“A magistratura federal, como um todo, tem o sentimento de que Moro é muito capaz. Mas outros juízes teriam condições de ter feito o mesmo que ele faz. É um profissional preparado, não há o que discutir, merece todo o respeito. Mas não pode ser tratado como um ponto fora da curva”, disse, antes de complementar: “A maior parte dos colegas apoia o que Sérgio Moro fez e faz. Ele agiu dentro do que é a obrigação dele. Ninguém é sempre certo, mas acho que Moro representa a maior parte do pensamento da magistratura”.
Análise
A operação é o fato mais relevante do país
Parte da indignação da sociedade demonstrada claramente nas eleições é reflexo da Lava Jato. Há uma rejeição muito forte a políticos e autoridades. A operação é o fato mais relevante que aconteceu no Brasil nas últimas muitas décadas. É uma luz que vemos no final desse túnel, de que algo pode ser modificado. É necessário manter os olhos atentos para impedir que esses políticos e autoridades envolvidos tentem esvaziá-la. A Lava Jato trouxe à tona discussões importantes, como sobre o foro privilegiado e sobre o tempo da tramitação dos processos no STF. O Supremo não pode ser cemitério de ações ou de investigações. A operação entrou para a História, definitivamente.
Gil Castello Branco, secretário-geral da Associação Contas Abertas.
Após anos de afinidade, jurista se afasta de Moro e critica ações
Há dez anos, um grupo de operadores do Direito presenteou o jurista Afranio Silva Jardim com a obra “Tributo a Afranio Jardim”. Um dos capítulos é assinado pelo juiz Sérgio Moro, com quem o jurista debatia teses em rodas qualificadas, tendo oportunidade de divergir, mas também de convergir em discussões. O tempo passou, Moro dissecou a operação Mãos Limpas, de 1992, tornou-se o responsável pela Lava Jato e adotou medidas que triunfaram no combate à corrupção italiana.
No início dos trabalhos, Afranio, ex-promotor e ex-procurador de Justiça aposentado, livre-docente, professor de Direito Processual Penal na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), orgulhou-se dos andamentos eficazes. Mas depois preocupou-se com deslumbramentos dos jovens procuradores e dos excessos praticados por Moro. Passou, então, a ser crítico ferrenho da operação e as trocas de e-mails com o juiz chegaram ao fim.
“Mandei um email dizendo que achava que ele estava praticando excessos. Ele me perguntou o porquê, disse que ficava triste, mas que discordava”, contou.
O livro-homenagem chegou à terceira edição e Afranio pretende franquear a Moro o direito de não manter o nome ligado à obra “para evitar constrangimentos” a ambas as partes.
Mas o que foi a gota d’água para ir à trincheira contrária à Lava Jato? “As prisões sem a devida fundamentação. Não ficaram demonstradas as necessidades. E aí estamos autorizados a suspeitar que elas têm escopo de criar condições de uma delação premiada”, disse, antes de prosseguir: “As pessoas querem ver outras na cadeia, sem muita reflexão. Querem porque querem. Mas há muitos que acham que o devido processo legal deve ser cumprido”.
O argumento vale de Marcelo Odebrecht a Eduardo Cunha. “Se não fosse a enfermidade da ex-mulher do Guido Mantega, ele estaria preso até hoje. Ele está solto. Fugiu? Representou qual risco?”, questionou.
Indagado se na “balança da operação” pesam mais pontos positivos ou negativos, Jardim diz haver um empate. “Sopesando prós e contras, não se sabe aonde vamos chegar.”
PT repete discurso da “parcialidade” da Lava Jato
Em artigo recente publicado na “Folha de S. Paulo”, os procuradores da Lava Jato Deltan Dallagnol e Orlando Martello sublinharam que o discurso da parcialidade da Lava Jato “é o mantra da defesa política quando a defesa jurídica não prospera”. Além disso, justificaram o foco sobre o antigo grupo da situação dizendo que “as indicações de dirigentes de órgãos federais se dão pelo partido no poder ou sua base aliada”.
Todas as explicações não foram suficientes para levar o PT, partido mais poderoso do país por quase 14 anos, a uma autocrítica.
Fundador da legenda e petista histórico, Perly Cipriano considera que, até agora, a operação é marcada por “absoluta parcialidade”. “Não queremos que haja nenhum deslize, não queremos que se tenha tolerância com ninguém. Queremos apenas que se apure da maneira correta, honesta. Não podemos viver em um mundo em que uma pessoa denuncia, opina e julga”, disse.
O petista afirma não haver avanços da operação sobre lideranças de outros partidos. “Queremos que deem demonstração mínima de que vão apurar denúncias contra PSDB e PMDB também”, afirma.
O PT comemora o fato de a ONU ter recebido, em caráter preliminar, a denúncia feita pela defesa do ex-presidente Lula contra Sérgio Moro e procuradores da Lava Jato.